Na história do conhecimento, avanços na sistematização do conhecimento científico têm sido feitos em detrimento do sobrenaturalismo. E avanços filosóficos buscando lógica e razão obtiveram o mesmo efeito.
Por exemplo, quando Hipócrates, o "fundador" da Medicina, buscou estudar sistematicamente as doenças, rejeitou que elas tivessem causas sobrenaturais ou mágicas [11].
Nossos esforços por conhecer, historicamente, estiveram associados ao abandono de histórias mitológicas que acalentavam nossos corações. Como explicar de outra maneira, por exemplo, que os filósofos que tiveram noções intuitivas sobre a verdadeira constituição da matéria há milênios, também abandonaram a crença em intervenções mágicas e divinas no mundo? Assim o fizeram Demócrito, Leucipo, e Epicuro, este último sendo até creditado por formular uma das idéias mais antigas de método científico[13] e de indeterminância na matéria.[6]
O que os criacionistas falham em apreender hoje é que sem materialismo, ao menos metódico, não há ciência. Sem ciência não há conhecimento referenciado no mundo sensível. O que a Teoria da Evolução fez foi reiterar o que está acontecendo desde a aurora da humanidade: a crescente descoberta de que o mundo sensível não tem fantasmas.
Apesar das tentativas de evitar esse embate, por parte de autores como Stephen Jay Gould e seus artificiais "ministérios não interferentes", é inegável que a Teoria da Evolução fornece premissas filosóficas fortes para essa conclusão materialista. Deuses são desnecessários, por isso a Teologia é uma luta vã por tentar estabelecer o impossível, e por tentar tornar plausível o extremamente improvável.
Se antes Deus não servia de nada para explicação alguma, hoje sua própria ontologia é ameaçada, por estar baseada na idéia ingênua de que ele tem uma mente.
Porque de mentes, conhecemos apenas a nossa. E essa evoluiu.
Como bem percebem cientistas como Gary Marcus e Steven Pinker, a nossa mente não passa de uma grande gambiarra. Os genes humanos são multitarefas, e as capacidades mentais, tal como a linguagem, evoluíram em sinergia nessa gambiarra.[14]
Gambiarra é aproveitar o que já existe, improvisar, e é assim que funciona a evolução. Como Gould dizia, se os barcos a motor tivessem evoluído, o motor precisaria ter surgido de modificações graduais nas velas.[15]
Não tem nenhum reducionismo à física aqui, a analogia é perfeita.
Quem já fez anatomia comparada de cérebros de vertebrados compreende perfeitamente que existe uma homologia entre as partes mais básicas, como tronco cerebral, cerebelo, córtex, e até lobo olfatório.
E essas partes, por pura gambiarra, se modificaram de acordo com a seleção natural em cada grupo. Os tubarões adquiriram um sentido completamente novo, da eletrorrecepção, e por conta disso o cerebelo deles é enorme, cheio de sulcos, um órgão muito complexo para lidar com um sentido complexo.
Um tubarão é capaz de apontar com precisão um peixe debaixo da areia.
Nós, primatas, tivemos modifcações no lobo olfatório, que em nós é ridículo, tão ridículo quanto é o nosso olfato em comparação ao olfato dos cães, e esses têm um lobo olfatório enorme e complexo, condizente com o superolfato deles.
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E nós temos um neocórtex complexo e maior (não em tamanho simples mas em coeficiente de encefalização) do que o dos outros mamíferos. E isso está relacionado às nossas capacidades sociais, cognitivas, e até espirituais se quiser. (No sentido de bolar e acreditar nessas fantasias, é claro.)
O cérebro é responsável pela mente. Por isso, danos no cérebro afetam faculdades mentais. O álcool faz efeito em coisas como inibição social apenas porque passa pela barreira hematoencefálica e atinge os neurônios.
Como nossa mente é um resultado tão contingente e improvável quanto as penas de um pombo, uma mente fora daqui, e maior que a nossa, só pode ser mais improvável ainda.
É essa a conclusão de autores modernos como Daniel Dennett e Richard Dawkins. Eles mostram como um pensamento ateu é coerente com nossa ciência moderna. Por isso, meus amigos, esperem ver por aí bastante falácia contra eles, e principalmente contra Dawkins e seu livro "Deus, um delírio".
Já vi teístas que sequer leram esse livro taxando Dawkins como "tosco", "extremista", etc. Obviamente, nenhum consegue contrapor o argumento da contingência e da improbabilidade, que não são de Dawkins, mas ele, como fez durante boa parte de sua carreira, soube expor de modo mais compreensível.
É pura desonestidade intelectual adjetivar os argumentos contidos nesse livro e dar-lhes um piparote preguiçoso. Essa postura preguiçosa e covarde eu testemunhei até entre os 'catedráticos' da filosofia da religião da UnB, que prepararam uma semana de ateísmo na UnB mas não tiveram a coragem de fazer uma palestra para refutar Dawkins.
A primeira coisa errada de falar que Dawkins e suas idéias são isso e aquilo, além de ser um bestíssimo ad hominem, é que a maior parte das idéias do livro "Deus, um delírio" não são dele, ele herdou dos gigantes em cujos ombros ele se senta. Como Bertrand Russell, a tradição materialista de gente como David Hume, Epicuro de Samos, Karl Marx (apenas por retirar os deuses da influência na história), Sigmund Freud, e (a contragosto com o modo como pensava na juventude) Darwin.
O assunto da existência de deus(es) é um tabu, até dentro da academia, e é justamente por isso que esse tipo de resposta preguiçosa e falaciosa é dada a argumentos refinados como os contidos em parte no livro de Dawkins.
Dizem, por exemplo, que Dawkins pensa ter provado que deus não existe e que pensa que a ciência leva obrigatoriamente ao ateísmo. Isso não poderia ser mais falso. Não é preciso muita refinação intelectual para perceber a diferença entre isso e "Dawkins tem argumentos de improbabilidade de deuses e deriva esses argumentos de premissas científicas".
Meus motivos para ser ateu são plenamente congruentes com os motivos que eu tenho para aceitar a origem natural das espécies, inclusive o ser humano, e rejeitar o criacionismo. Por congruência quero dizer coerência filosófica. Isso é bem diferente de dizer que a ciência leva ao meu ateísmo. Ela não leva obrigatoriamente, mas ela apóia, ela me dá bases, e eu mostro quais são.
As bases são que a ciência tem tendido a apoiar a idéia de que entidades complexas precisam ter origem em entidades simples. A mente humana é apenas uma cena na "fita da vida" (como diz Gould). Se a fita fosse tocada denovo, desde o início, não teria essa cena.
Ou seja, a mente que conhecemos, a nossa, nada mais é que o resultado contingente de processos cegos, históricos.
Sendo assim, só pode ser fadada a uma alta improbabilidade a afirmação de que uma mente, ou seja, deus, é necessária para a existência de tudo. Isso é tão absurdo quanto afirmar que uma bolhinha em particular que brotou da água fervente, por uma pura contingência num certo canto da panela, é ela, em toda a sua banalidade, a condição necessária para toda a fervura do sistema.
A mente é uma bolhinha banal na fervura do sistema do universo. Atribuir a mente ao alicerce que sustenta o universo é tão bobo que chega ao nível da infantilidade.
É este, em resumo o argumento da contingência, que tem como premissa direta a Teoria da Evolução.
Autor: Eli Vieira
Referências:
6 – John Bellamy Foster, Brett Clark & Richard York. Critique of Intelligent Design – Materialism versus Creationism From Antiquity to the Present. Monthly Review Press, 2008.
11 - http://en.wikipedia.org/wiki/Hippocrates
13 - David C. Lindberg. The Beginnings of Western Science. University of Chicago Press, 2007.
14 - Eörs Szathmáry & Szabolcs Számadó. Sendo humano: linguagem: uma história social das palavras. Nature, 2008.
http://evolucionismo.ning.com/profiles/blogs/sendo-humano-linguagem-uma
15 - Stephen Jay Gould. O Polegar do Panda.
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